Os povos indígenas, especialmente aqueles que vivem isolados, são considerados um grupo mais vulnerável à Covid-19 e demandam, portanto, atenção redobrada em relação às medidas de prevenção para evitar o contágio. Segundo monitoramento realizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), até a última quinta (dia 4), o novo coronavírus já havia causado a morte de 948 indígenas, de 161 povos.

Assim como as demais escolas da rede, as de educação indígena também tiveram que interromper as atividades presenciais por conta da pandemia. E se assegurar o acesso às atividades de ensino remoto a todos os estudantes foi uma tarefa complexa até mesmo nos grandes centros urbanos, nas escolas indígenas o desafio foi ainda maior, por conta do acesso precário à internet em muitas aldeias.

Na aldeia Lagoa Encantada, do povo indígena Jenipapo Kanindé, a 70 km de Fortaleza (CE), até outubro do ano passado os moradores só contavam com internet a rádio. Por isso, na Escola Jenipapo Kanindé, o ensino remoto só foi possível por meio do envio de atividades impressas aos estudantes.

“Os professores mandavam as atividades para o email da escola, a gente imprimia e pedia para os professores retirarem e entregarem para os pais dos estudantes”, relata a gestora, Juliana Alves Jenipapo. “É uma comunidade pequena e as casas são próximas, então, a gente conseguiu trabalhar dessa forma”, explica.

Segundo ela, a devolutiva das atividades foi de 99%, o que surpreendeu a própria equipe pedagógica, já que antes da interrupção das aulas a participação dos pais em reuniões agendadas pela escola muitas vezes era baixa.

“A gente começou a pesquisar e ver que nessa época de pandemia a maioria dos pais estavam em casa, não estavam nos seus afazeres do cotidiano”, afirma.

No caso dos alunos que não estavam realizando as atividades, a orientação da gestão aos professores foi ir até a casa de cada um verificar o que estava acontecendo.

Na Escola Brolhos da Terra, situada na terra indígena Tremembé da Barra do Mundaú, em Itapipoca (CE), a gestão também não pôde contar com a internet para dar continuidade ao ensino de forma remota.

Escola Brolhos da Terra

“Muitos dos nossos alunos nem televisão têm em casa. Tivemos que pensar em alternativas para não deixar o nosso povo privado de informação, privado do processo de ensino e aprendizagem”, conta a coordenadora pedagógica da escola, Cleidiane Tremembé.

A alternativa encontrada foi a seguinte: como o isolamento dos indígenas é por aldeia (“porque ele precisa da aldeia inteira para sobreviver, explica Cleidiane), foram separados em grupos os professores provenientes de cada aldeia (são quatro dentro da terra Tremembé) e cada grupo ficou responsável por realizar o acompanhamento e monitoramento do processo de aprendizagem dos estudantes da escola residentes naquela comunidade. “Os professores planejam as atividades, socializam com a gestão, a escola faz a impressão e os docentes levam aos alunos e depois trazem para que sejam feitas as intervenções necessárias.

“Muitas vezes tinha um aluno de 7º ano que estava sendo acompanhado por um professor que era do 4º ou 5º ano. Então, a gente pode ter deixado nesse caminho algumas lacunas mas nos fortalecemos na ideia de que tivemos o acompanhamento de 100% dos alunos e o monitoramento das atividades”, pensa Cleidiane. “E isso acabou fortalecendo as relações do grupo de professores”, complementa.

A coordenadora acrescenta ainda que também ganharam ainda mais relevância  – o que já era uma característica da educação indígena – a questão da vivência da família.

“Porque o menino está em isolamento na sua aldeia mas não deixou de aprender. Talvez na leitura e na escrita tenham ficado algumas lacunas, porém esse menino ganhou mais tempo para vivência familiar, aprendeu mais técnicas de pescaria, de agricultura, sobre práticas de espiritualidade”, enumera.

Já na Escola Chuí, que busca manter viva a cultura dos Pitaguary, situada na zona rural do município de Maracanaú (CE), foi possível a utilização das mídias digitais para realização do ensino remoto. O whatsapp foi a principal ferramenta utilizada: foram criados grupos no aplicativo, administrados pelos professores, por onde eram enviadas  as atividades, tanto videoaulas como atividades em pdf que os alunos respondiam. Segundo o diretor da unidade, João Paulo da Silva Lima, o índice de participação dos estudantes foi de 80%. A escola atende 400 alunos, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio e EJA. Conta com uma boa infraestrutura: o prédio é novo, dispõe de laboratório de informática, acesso a internet e equipamentos de mídias.

A adaptação da gestão

Assim como os professores, os gestores das escolas indígenas também tiveram que se adaptar ao contexto da pandemia. João Paulo, da Escola Chuí, relata que teve dificuldades de início, porque, além de se adequar ao novo cenário, a gestão e os docentes tiveram que atender a outras e novas demandas da Secretaria também.

“Tive que me adaptar ao home office. Foi bastante complicado para mim. Eram 4, 5 reuniões por dia com diferentes assuntos referentes à gestão da escola, além do trabalho de acompanhamento dos professores e das devolutivas deles. Planos de aulas, preenchimento de planilhas de frequência e participação dos alunos, tudo isso a Secretaria de Educação nos passava a demanda e a gente tinha que dar a devolutiva. Foi um período bastante complicado, mas consegui me adaptar e hoje flui muito bem”.

Como coordenadora pedagógica da Escola Brolhos da Terra, que conta atualmente com 152 matrículas no Ensino Fundamental I  e II e no Ensino Médio, Cleidiane lamenta não poder mais realizar o acompanhamento de cada aluno de forma presencial.

“Eu fazia o acompanhamento pedagógico individualizado todo santo dia. Se você chegasse na minha escola e perguntasse quem estava faltando, eu ia saber dizer o nome de quem não estava e provavelmente porque ele não estava. Era algo que eu fazia cotidianamente”.

Ela complementa, porém, que como todos os professores têm acesso à internet, ainda que de forma limitada, conversa diariamente com os professores.

“E semanalmente me sento presencialmente com todos eles. Eu consigo acompanhar a distância, a partir do feedback do professor e a partir disso a gente cria intervenções pedagógicas de modo a apoiar aquele menino”, completa.

Cleidiane acredita ainda que a pandemia jogou luz sobre outras dimensões da vida e do desenvolvimento dos estudantes e que também devem ser objeto de atenção da escola. “Eu acho que a pandemia veio para ensinar e mostrar para gente que a gente precisa desse olhar diferenciado e específico minuciosamente para cada um dos nossos alunos, independentemente da série”, diz, referindo-se às questões sociais e econômicas que afetaram as crianças e adolescentes e impactaram no equilíbrio socioemocional deles.

A adequação ao contexto da pandemia também comprometeu a saúde mental de parte dos profissionais da educação. Foi o que aconteceu com a gestora Juliana, da Escola Jenipapo Kanindé.

“Além da direção da escola, sou líder de comunidade e fiquei muito preocupada com a situação que o meu povo ia ter que conviver”, lembra. “Minha mãe é a cacique da aldeia e já tem uma certa idade. O medo de perder meus pais, os nosso idosos foi muito grande, acabei ficando muito à frente de tudo”, conta.

Diagnosticada com depressão, a gestora teve que se afastar para realizar um tratamento e ter acompanhamento psicológico para poder retomar as atividades. Nesse período, observou que ter instituído uma gestão compartilhada na escola, que conta com um Conselho de Pais e Mestres e um Conselho Escolar ativos, foi um acerto.

“Tive esse problema de saúde e os professores não deixaram a peteca cair. Por isso, a gestão compartilhada tem essa vantagem de todo mundo saber o que está acontecendo e mesmo na ausência do gestor sabem como conduzir”, pensa.

Novas perspectivas para educação

Os gestores das três escolas indígenas entrevistados relatam que as atividades escolares tiveram início em 2021, mas seguem em ensino remoto. A perspectiva é que nos próximos meses passem a ser em regime híbrido e, com o avanço da imunização dos povos indígenas (considerados parte do grupo prioritário), retomem integralmente em regime presencial.

Para Cleidiane, o advento da pandemia deixa como lição para a educação a necessidade de rever e repensar seus modos de fazer. “Talvez a gente precise priorizar algumas coisas nesse novo caminho e pensar uma nova perspectiva. Essa pandemia mostrou que a gente também precisa ter esse novo olhar para a educação”, conclui.