Desafios da educação indígena: mais escolas e mais professores
Embora o país tenha registrado muito progresso nos últimos anos, desde que a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, reconheceram o direito dos povos indígenas a uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária, ainda existem obstáculos significativos que impedem a garantia do direito à educação de qualidade para as crianças e os jovens indígenas, bem como sua progressão nos estudos.
De acordo com o Censo Escolar da Educação Básica de 2020, das 273.928 matrículas registradas em escolas que oferecem educação indígena no país, a maioria se concentra no Ensino Fundamental: 166.546. No Ensino Médio, há apenas 26.358 matriculados em escolas indígenas.
Segundo o antropólogo e professor adjunto da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Gersem Baniwa, o gargalo começa já na passagem dos anos iniciais para os finais do Ensino Fundamental.
“Nos últimos 20 anos, em razão da universalização da Educação Básica, houve um avanço na educação indígena, muito especificamente nas séries iniciais do Ensino Fundamental. A partir daí, de fato começa a ter muitos desafios, porque as escolas indígenas na maioria são pequenas, com pouca capacidade para organizar, estruturar e ofertar séries mais avançadas, a partir do 5º ano, e menos ainda capacidade para ofertar o Ensino Médio. E é claro que isso acaba também impactando o acesso ao Ensino Superior”, aponta.
Com a falta de vagas nesses níveis de ensino nas escolas nas aldeias, os indígenas que querem continuar os estudos acabam tendo que se deslocar para as cidades, enfrentando dificuldades de transporte, discriminação e inadequação das propostas das escolas urbanas para sua realidade.
“Hoje, as crianças indígenas, quando terminam o 5º ano, têm que se deslocar quilômetros a pé ou às vezes em péssimas condições de transporte público para estudar em escolas não indígenas na vizinhança, sofrendo todo o tipo de preconceito, racismo e violência, além das dificuldades financeiras para pagar um ónibus e tudo mais”, explica Gersem Baniwa.
“O mesmo acontece com o Ensino Médio. Os poucos alunos indígenas que estão no Ensino Médio fazem esse sacrifício diário para se deslocar das aldeias até distritos e cidades vizinhas e estudar em escolas não indígenas”, completa.
Assista ao depoimento de Gersem Baniwa ao Instituto, em que ele fala de sua trajetória e dos desafios e das particularidades da educação indígena:
Gargalos para a conclusão da Educação Básica
Ainda de acordo com o Censo, existem hoje no Brasil 3.359 escolas indígenas – um terço das quais fica no estado do Amazonas –, que contam com 20.373 professores e 1.884 gestores. Desse total, 3.334 escolas estão situadas em terras indígenas, áreas de assentamento ou comunidades remanescentes quilombolas. Quase metade delas (49%) não possuem esgoto sanitário, cerca de um terço (30%) não conta com energia elétrica e 75% não têm acesso à internet; banda larga é uma realidade em apenas 14% das unidades. Além disso, praticamente não há estruturas de suporte ao aprendizado de ciências e tecnologia nas escolas indígenas: apenas 8% dispõem de algum tipo de laboratório em suas instalações.
Além dos problemas de infraestrutura, o material didático representa um grande desafio, já que há uma enorme diversidade cultural entre os indígenas brasileiros. O Censo aponta que menos da metade (48%) utiliza material didático em língua indígena ou bilíngue (em língua indígena e em Língua Portuguesa), apesar da maioria (74%) ministrar aulas em língua indígena. De acordo com o Censo Demográfico de 2010, existem 305 povos indígenas em território nacional, que falam 274 línguas diferentes e têm culturas distintas. Assim, os materiais precisam equilibrar elementos do currículo nacional com as especificidades da cultura na qual a escola está inserida, ou seja, o idioma da população local (que deve ser ensinado em paralelo ao português) e seus conhecimentos tradicionais.
Pelos mesmos motivos, outro desafio significativo é a formação dos professores indígenas, considerando que, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Indígena, todos os docentes devem ser das aldeias em que dão aula, porque só assim eles vão estar preparados para lidar com a realidade dos seus alunos. E, segundo Gersem Baniwa, faltam professores indígenas com formação de nível superior para atender os estudantes a partir do 6º ano. Por isso, é preciso investir na formação de professores nas licenciaturas interculturais indígenas, que habilitam os docentes nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio.
Atualmente, essas licenciaturas (Educação Indígena Formação de Professor), sem áreas específicas, são desenvolvidas em 20 instituições de ensino superior públicas, por meio do Prolind, programa de apoio à formação superior de professores indígenas. De acordo com o Censo de Educação Superior 2018, esses cursos têm 2.247 matrículas. Já os cursos de formação de professores indígenas em áreas de conhecimento da Educação Básica no país são oferecidos por apenas cinco instituições de ensino. Em 2018, eles tinham 966 matrículas.
Aprofundamento das desigualdades na pandemia
Assim como outros grupos em situação de vulnerabilidade, os indígenas também foram fortemente impactados pela pandemia de Covid-19. Além de serem um dos grupos com maiores índices de mortalidade ocasionada pela doença, especialmente os que vivem em condições isoladas, esses povos também tiveram seu direito à educação comprometido com a interrupção das atividades presenciais das escolas e diante da da falta de acesso à internet nas aldeias.
Em reportagem publicada no dia 2 de fevereiro deste ano aqui no site, relatamos alguns dos desafios enfrentados pelos gestores de escolas indígenas nesse processo de adaptação ao ensino remoto.
Apesar das dificuldades enfrentadas, uma das educadoras entrevistadas, Cleidiane Tremembé, coordenadora pedagógica da Escola Brolhos da Terra, situada na terra indígena Tremembé da Barra do Mundaú, em Itapipoca (CE), também avalia que o momento também possibilita a reflexão sobre que educação queremos para as novas gerações.
“Talvez a gente precise priorizar algumas coisas nesse novo caminho e pensar uma nova perspectiva. Essa pandemia mostrou que a gente também precisa ter esse novo olhar para a educação”, conclui.
Para saber mais:
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica