Não há garantia de direitos sem enfrentamento ao racismo
Por Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco
Hoje, 10 de dezembro de 2020, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 72 anos. Como afirma o jurista e Professor Fabio Konder Comparato em seu artigo “Sentido histórico da Declaração Universal”, o documento, redigido sob os impactos da 2ª Guerra Mundial, “representou a manifestação histórica de que se formara, enfim, em âmbito universal, o reconhecimento dos valores supremos da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens, como ficou consignado em seu artigo I”. Comparato supunha que a transformação desses ideais em direitos efetivos no Brasil seria progressiva “como fruto de um esforço sistemático de educação em direitos humanos”. Decorridas sete décadas, ainda estamos muito distantes de alcançá-los.
Atualmente, o mundo se depara com a maior crise sanitária e humanitária desde aqueles tempos. E seus impactos representam um risco enorme para a garantia dos Direitos Humanos. Com o avanço da pandemia, avançaram também as desigualdades, tornando-as visíveis para muito mais pessoas. Hoje, podemos dizer que o mundo vê a fronteira da pobreza – os esvaziados de esperança, os sem tempo por vir.
Ao escancarar as desigualdades, por vezes negadas pela sociedade, a crise expõe o fracasso na efetivação dos direitos individuais e coletivos preconizados pela Declaração. A manifestação crescente do racismo, o negacionismo em suas múltiplas frentes, o abandono das políticas de bem-estar social e o desmontar das políticas ambientais evidenciam, no Brasil e em tantos outros países, a urgência de nos mobilizarmos ainda mais pela retomada dos ideais proclamados pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, há 72 anos.
Para que consigamos vencer a crise imposta pela COVID-19, é fundamental desenharmos uma nova configuração de Sociedade, com uma rede pública de proteção social, sobretudo para os mais vulneráveis. E, além dos parâmetros dessa inclusão, no caso brasileiro, temos que dar conta de vencer nossos principais desafios históricos: o racismo estrutural, as desigualdades abissais e a exploração desenfreada de nosso meio ambiente.
Ainda não enfrentamos o racismo, entranhado em nossa sociedade, com densidade necessária, no campo da política, no campo da economia e no campo dos direitos sociais como um todo. Hoje no Brasil, em pleno Século XXI, de cada 100 crianças brancas que entram no 1º ano do Ensino Fundamental, 75 concluem o Ensino Médio, o que já é um número péssimo. Mas de cada 100 crianças negras que entram no 1º ano do Ensino Fundamental, só 58 terminam o Ensino Médio. Esse dado, entre tantos outros, mostra a gravidade da questão racial.
Não há como projetarmos uma sociedade brasileira conectada, com potência de transformação a ponto de estar incluída na 4ª Revolução Industrial, pronta para enfrentar os desafios contemporâneos da democracia, com direito a voz, sem reconhecermos o racismo. Não há como fazer nada disso de forma sustentável sem desenvolvermos práticas antirracistas, tanto individuais quanto no desenho da política pública.
É possível um novo contrato social? Que tenha uma economia mais dinâmica, sustentável, inclusiva e transformadora e uma sociedade mais democrática, solidária e plural, que se fazem intolerantes ao racismo e criam bases para mudar o padrão histórico de desigualdade que temos? Essa perspectiva não é um devaneio utópico. Ao contrário, é uma utopia pragmática que pode orientar os contornos de nosso futuro como nação. É inconcebível uma sociedade contemporânea, constituída a partir da Declaração, que ainda mantenha os níveis de desigualdade e de desrespeito aos direitos universais que presenciamos e toleramos hoje.
Não há política sem utopia – as bases estão dadas e sabemos que o que fizemos até aqui foi insuficiente. Creio que podemos afirmar que o Século XXI inaugura-se no pós-pandemia da COVID-19. Esse novo ciclo abre a oportunidade de aumentar nosso arco político para uma visão ampla de sociedade, com alianças sólidas, plurais e democráticas que projetem o Brasil a partir do enfrentamento, com sobriedade e determinação, do racismo e das desigualdades estruturais. E, assim, escolher os modos de retomar o espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos para seguir em direção à construção de um mundo melhor.