O papel da escola na promoção de uma cultura de respeito aos direitos humanos
Em 10 de dezembro de 1948, a Organização das Nações Unidas promulgava a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A carta define direitos fundamentais inerentes à condição humana, portanto universais, como liberdade, igualdade, dignidade, justiça, entre outros.
E qual o papel da escola na promoção desses princípios e valores? Em artigo, Maria Victoria Benevides, professora da Faculdade de Educação da USP com extensa produção e militância na área de direitos humanos, destaca:
“(…) a escola pública é um locus privilegiado pois, por sua própria natureza, tende a promover um espírito mais igualitário, na medida em que os alunos, normalmente separados por barreiras de origem social, aí convivem. Na escola pública o diferente tende a ser mais visível e a vivência da igualdade, da tolerância e da solidariedade impõe-se com maior vigor. O objetivo maior desta educação na escola é fundamentar o espaço escolar como uma verdadeira esfera pública democrática”.
Especialmente no contexto brasileiro, a pesquisadora enfatiza ainda que a educação em direitos humanos implica a derrubada de valores e costumes historicamente arraigados entre nós, decorrentes do nosso passado escravocrata e oligárquico. Envolve, portanto, a criação de uma nova cultura: “Significa essencialmente que queremos outra sociedade, que não estamos satisfeitos com os valores que embasam esta sociedade e queremos outros”.
Contexto da pandemia
A necessidade de isolamento social imposta pela pandemia evidenciou que valores e princípios priorizamos e valorizamos enquanto sociedade e reforçou a importância do espírito que emana dos artigos da Declaração, como senso de responsabilidade coletiva, exercício da cidadania, respeito ao próximo.
E com a suspensão das aulas presenciais, as escolas têm desempenhado um papel importante na promoção dos direitos e na manutenção da dignidade dos seus estudantes. Nesse âmbito estão, por exemplo, as políticas de segurança alimentar, por meio da distribuição de cestas básicas e vales-alimentação, a realização de forças-tarefa para garantir um contato regular com as famílias para saber como elas estão e acionando canais que possam oferecer proteção social para esses estudantes e suas famílias, pela oferta de itens básicos como água, álcool, máscara.
Mesmo depois de superada a pandemia, as escolas terão outros desafios pela frente, como a busca ativa de estudantes que evadiram e o acolhimento socioemocional dos alunos e equipes.
“Esse cenário me parece que torna a perspectiva da educação em direitos humanos ainda mais urgente. Existem muitos debates acerca dos prejuízos com a suspensão das atividades presenciais que são válidos, mas acho que tem uma outra dimensão que é como a escola vai lidar com o sofrimento e as angústias que essa pandemia produziu nos estudantes”, observa Raquel Souza dos Santos, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, atualmente integrante da Coordenação de Políticas de Ensino Médio do Instituto Unibanco.
Aprendizado na prática
Para realizar uma educação em direitos humanos, é importante que os meninos e meninas conheçam todos os acontecimentos que resultaram na promulgação da Declaração.
“E é fundamental que os estudantes aprendam a ler suas realidades, o contexto histórico contemporâneo, seu bairro, a luz dos princípios que estão contidos nessa carta”, afirma Raquel
Embora muitas escolas já realizem projetos e iniciativas que dialogam diretamente com os artigos presentes na Declaração, como projetos de combate à discriminação racial ou à violência de gênero, é importante que a perspectiva da educação em direitos humanos esteja presente e seja explicitada, reforçando a percepção sobre a nossa legislação como resultado de um acúmulo histórico.
“Estamos vivendo tempos muito sombrios em que muitos valores, princípios, instituições que são resultado de um longo processo histórico estão sendo colocados em cheque, violentados, suprimidos. Nesse cenário, assumir que se desenvolve uma educação em direitos humanos é de certa forma tomar partido de um campo de ideias e princípios que estão expressos na nossa Constituição Federal de 1988”, reforça Raquel.
Para além de assegurar que os estudantes tenham acesso a conteúdos e conhecimentos conectados ao documento, especialistas no tema enfatizam que a formação de cidadãos imbuídos do espírito presente na Declaração exige a vivência na prática desses valores.
“Há que se ter uma coerência com o que acontece na escola, entendendo que isso também faz parte do currículo”, lembra Raquel. “Não há educação em direitos humanos se na sala de aula os meninos aprendem sobre o extermínio de milhões de judeus, de ciganos, de homossexuais e nessa mesma sala de aula os meninos e as meninas são discriminados por apelidos, brincadeiras racistas com anuência dos adultos”, exemplifica.
Nesse sentido, atentar para como se dão as relações na escola entre os diferentes atores – entre estudantes, professores, diretor e demais profissionais da escola – é essencial. É preciso que todos se sentam respeitados, acolhidos nas suas diferenças, ouvidos e tratados com dignidade.
Papel da gestão
Nessa dimensão das relações, a gestão desempenha papel relevante, já que tem responsabilidades em relação às práticas, às rotinas, às formas de interação e de tratamento de todos que estão na escola. Atentar para a resolução de conflitos no espaço escolar é um cuidado especial que a equipe gestora deve ter nesse sentido.
“Como ela resolve os conflitos, sem silenciar, sem passar a mão na cabeça de ninguém, mas através do diálogo, da tentativa de construir consensos possíveis, do respeito, da não humilhação dos estudantes, a partir de lógicas que fujam de um certo punitivismo, o que não significa desresponsabilizar os indivíduos?”, esclarece Raquel.
A forma como se dão os processos de tomada de decisão na escola também é um indicativo de uma gestão comprometida com os direitos humanos. É preciso que ela observe como faz a gestão do seu cotidiano, se está orientada por princípios democráticos e de fortalecimento da escuta e dos canais de participação dos estudantes, das famílias, dos professores e demais profissionais da escola.
Ainda dentro da perspectiva de que a educação em direitos humanos se dá não apenas em sala de aula, mas em todos os espaços da escola, é importante assegurar que todos – incluindo aí o porteiro, a merendeira, o inspetor e demais funcionários – sejam tratados como cidadãos e indivíduos potentes e se percebam como educadores responsáveis por formar outros sujeitos.
“Se a prática deles não refletir a prática da escola e o projeto da escola, é provável que essa escola viva contradições”, afirma Raquel.
Experiências no contexto da pandemia
No Centro de Ensino em Período Integral Prof. Pedro Gomes, de Goiânia (GO), a Mostra de Vídeos de Direitos Humanos é realizada desde 2013 e já se encontra na 8ª edição. A ideia de criar o evento veio do atual gestor da escola, José Joaquim Gomes Neto, que à época atuava como professor de Filosofia, e da professora Ludmyla, de Língua Portuguesa, depois de identificarem a necessidade de discutir a temática com os estudantes.
Ao longo dos anos, o projeto foi sendo aprimorado e adaptado, mas segue como uma ação que combina a produção audiovisual e o debate sobre direitos humanos, atualmente voltada para as turmas do 2º ano do Ensino Médio. A Mostra, que consiste na apresentação dos vídeos elaborados pelos estudantes para toda a escola, e a escolha dos melhores trabalhos por um corpo de jurados são apenas a culminância no fim do ano de um processo que se inicia em março.
“A gente lança o projeto com uma aula inaugural realizada por algum especialista e/ou militante na área de direitos humanos convidado, que traz uma reflexão e introduz os meninos na temática”, explica Neto.
A produção do vídeo é antecedida pela elaboração de um projeto de pesquisa e roteiro sobre dois ou três artigos escolhidos pelos estudantes, ampliando o repertório sobre o tema. O acompanhamento do trabalho é feito por um grupo de professores, que se alterna a cada ano.
“Essa foi uma decisão que tomamos para garantir que o projeto tivesse adesão de toda equipe. Quanto mais pessoas se envolverem nele, mais terão experiência nos processos, e maior o engajamento. Esse ano a gente teve participação dos professores de Artes, História e Língua Portuguesa”, conta Neto.
Para subsidiar os alunos nessa produção, são realizadas oficinas técnicas com profissionais e professores da área audiovisual de universidades locais, em muitos casos ex-membros do júri da Mostra em alguma edição e que acabam se tornando parceiros da escola.
O gestor enfatiza a importância do processo realizado ao longo do ano que se encerra na premiação.
“A gente acha que as coisas têm que ter uma certa durabilidade para conseguir pensar nelas com extensão de caminhos e observar o que está acontecendo. Ao longo do tempo, a gente foi aprendendo com os direitos humanos a trabalhar dessa forma”, afirma.
Além da Mostra, outros projetos são desenvolvidos com alunos das outras turmas, com focos específicos, mas que de modo geral visam desenvolver no aluno não só a ampliação de repertório e de conhecimentos, mas também promover a formação em valores. O contexto da pandemia trouxe ainda outros desafios para o CEPI Prof. Pedro Gomes.
“Nem tudo tem relação direta com o currículo. Tem outros suportes que se fizeram necessário nesse ano: suporte alimentar, suporte emocional e afetivo com os estudantes”, relata Neto.
Acesse o canal no YouTube da CEPI Pedro Gomes para assistir a vídeos premiados nas edições da Mostra
Também em outra escola estadual da capital goiana, o CEPI Lyceu de Goiânia, a educação em direitos humanos está presente no cotidiano escolar, como consequência de um conjunto de ações realizadas com o objetivo de transformar a instituição, cujas atividades quase foram encerradas por conta de uma série de problemas.
“É o colégio mais plural que temos na capital, em termos de gênero, raça, classe social, credo, justamente por conta dessa pegada “diversa” que temos”, afirma o gestor da escola, Ricardo Marques Pinto, à frente do Lyceu desde 2017.
Entusiasta do modelo de educação integral, ele explica que as ações relacionadas à educação em direitos humanos se dão principalmente nas aulas das disciplinas eletivas que compõem a parte diversificada do currículo. Nesse último semestre, por exemplo, as aulas tiveram como mote a arte e cultura negra brasileira, em que foi feita uma reflexão sobre as contribuições das populações afrodescendentes nesses campos. Também foram estudadas expressões artísticas, como hip hop, rap, grafite e, como culminância desse trabalho, os estudantes apresentaram produções autorais sobre as questões debatidas. (Clique aqui para conferir uma das produções dos alunos)
Além da existência desses debates em sala de aula, a escola desenvolve outras ações e adota práticas alinhadas à promoção de uma cultura de respeito aos direitos humanos. Conta, por exemplo, com um regimento escolar, que define, entre outros pontos, procedimentos para resolução dos conflitos, elaborado coletivamente com a participação de pais, representantes de sala e do Grêmio, professores e grupo gestor. Vale mencionar também que, mensalmente, o gestor, os representantes de turma e do Grêmio se reúnem para fazer alinhamento pedagógico sobre como tem sido as aulas.
“Criamos com um tempo uma maturidade para que a gente possa ter essa discussão de uma forma mais tranquila, sem que nenhum dos lados leve para o lado pessoal. Porque a gente sabe que essa participação do aluno agrega demais na sensação de pertencimento, no comportamento dele, e para o professor também”, acredita Ricardo.
Ele destaca também a disciplina de projeto de vida e as ações de acolhimento dos novos alunos, realizadas pelos próprios estudantes, em que são trabalhadas as questões de identidade e respeito às diferenças.
“Ali a gente começa a estudar o eu, quem é esse indivíduo, por onde ele passou, qual o seu papel e a sua responsabilidade diante da sociedade e a partir daí a gente inicia essa verbalização das individualidades das pessoas, mostrando que as diferenças é que nos garantem a possibilidade de aprendizado, e que ele é um agente de transformação social”, explica.