Preconceito contra Travestis e Transexuais impacta no direito à educação
Segundo levantamento realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), só nos primeiros oito meses de 2020 os assassinatos de pessoas trans (129 casos) registraram um aumento de 70% em relação ao mesmo período em 2019 (76 casos). A violência é uma das facetas do preconceito e da discriminação que atingem essa população, que tem uma série de direitos negados.
Um deles é o direito à educação. Dados relacionados à questão são escassos, mas de acordo com pesquisa de 2017 realizada pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, 82% dos trans abandonam o Ensino Médio entre os 14 e os 18 anos. Conforme abordamos na edição 35 do boletim Aprendizagem em Foco, achados de alguns estudos trazem indícios desse ambiente escolar hostil a esses estudantes, marcado por agressões e pela intolerância, comprometendo a aprendizagem e levando à evasão. A baixa escolaridade dificulta a inserção qualificada no mercado de trabalho e agrava a situação de marginalidade vivida pelas pessoas trans.
“Na minha antiga escola sofria muito e pensei muito em abandonar a escola, mas com a ajuda de familiares e amigos, nunca desisti”, relatou a estudante cearense Laila Bárbara Galdino Ferreira, 17, ao Blog do IU.
“Uma vez falei que meu nome social é Bárbara, mas um professor continuou me chamando pelo nome de batismo e eu fiquei muito mal”, lembra.
Diante desse cenário, assegurar o direito à educação dessa população significa romper com esse ciclo de exclusão social. A gestão escolar desempenha papel importante na construção de um clima escolar favorável que assegure o direito à aprendizagem de todos e todas e na promoção de uma cultura de respeito à diversidade sexual.
“É na escola que os alunos começam a ter visão sobre o futuro, aprendem que homofobia e transfobia são crimes e mesmo que não fossem não deveríamos tratar as pessoas assim”, pensa a jovem.
Não silenciar
Para Erika Alcantara, mulher trans, professora concursada das redes municipais de ensino de Itaitinga e Maranguape (ambas situadas na Região Metropolitana de Fortaleza, CE), é fundamental não silenciar diante de situações de preconceito.
“Muito do que acontece em sala de aula é por omissão de uma parcela dos docentes. Digo isso por ter vivenciado muitas situações como estudante e por saber que acontece, porque eu estou na sala dos professores e eu escuto”, relata.
Erika atualmente é coordenadora dos anos finais do Ensino Fundamental da rede de Itaitinga, mas até o início desse ano estava à frente da gestão de uma escola do município, posto que assumiu interinamente no começo de 2020, mas no qual acabou permanecendo até a mudança de prefeito.
Ela conta que como diretora não admitia nenhum tipo de comentário, brincadeira ou atitude de cunho preconceituoso entre os estudantes nem entre os docentes. “Se eu não combato isso dentro da sala dos professores, como eu combato isso dentro da sala de aula? Não combato não…”, conclui.
“As pessoas querem naturalizar o preconceito, achar que chamar o outro de “bichinha”, de “veadinho” é menosprezar e achar que está colocando o outro numa situação de subalternidade. Eles têm que ter receio de falar isso, tem que ser desconfortável”, ressalta.
Erika afirma que mesmo no contexto do ensino remoto procurou estar atenta à questão. “A gente tinha 13 turmas, eu estava nos 13 grupos de whatsapp, vigilante ao comportamento deles”, relata. “Tivemos casos pontuais e na mesma hora fomos, conversamos com o aluno, ele pediu desculpas e deu tudo certo”, afirma.
No currículo
A abordagem das temáticas relacionadas às questões de gênero e diversidade sexual em sala de aula também é fundamental no combate à transfobia. Embora os termos “identidade de gênero” e “orientação sexual” tenham sido limados da versão final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as competências 7,8 e 9 descritas no documento tratam da diversidade e do respeito aos direitos humanos e, assim, respaldam o ensino desses conteúdos, além da própria Constituição Federal e da Lei de Diretrizes e Bases (LDB).
Para Erika, que também já atuou como formadora e tem licenciatura em Matemática pela Universidade Estadual do Ceará, a formação de professores para abordagem dessas questões em sala de aula é fundamental; ela defende que essas e outras temáticas sociais estejam presentes nas diferentes disciplinas, mesmo as de Exatas.
“Dá sim para pautar questões de gênero dentro da Matemática, problemáticas sociais como violência contra mulheres, pessoas trans, racismo… tudo isso eu trago para dentro da Matemática e tento contextualizar para que os alunos possam compreender e pensar nessas problemáticas sociais enquanto atores que podem modificar essa realidade”, afirma.
Erika cita como exemplo formação em gênero e sexualidade que realizou com professores de Matemática de Itaitinga utilizando dados sobre assassinatos de pessoas trans e travestis extraídos de dossiê produzido pela Rede Trans.
“Trouxe essa temática para eles aplicarem em alguns descritores nos quais os alunos têm mais dificuldade nas avaliações externas e ao mesmo tempo fazer a modificação social, potencializando a aprendizagem”
Ela própria aplicou essa proposta junto a uma turma de alunos de 8º ano, com a qual realizou uma oficina. Ao final, os estudantes produziram diferentes tipos de gráficos com dados do dossiê para contextualizar o que foi falado nas aulas (cálculos de porcentagem, média aritmética etc.).
“Não consigo tirar essa vivência das minhas aulas de matemática e consequentemente do meu trabalho, esteja onde eu estiver, seja como professora, formadora, gestora”.
Ela reconhece que a atual gestão no Governo Federal, marcada pelo conservadorismo e por retrocessos na luta LGBT, não contribui para o combate à transfobia nas escolas, porque estimula o preconceito e gera um certo receio entre os professores na abordagem desses temas em sala, que temem reações negativas. Mas ela não esmorece. Ao longo de sua história pessoal, enfrentou uma série de discriminações e dificuldades para realizar o sonho de ser professora. E acredita que é por meio da educação e da dedicação profissional que é possível construir um mundo melhor.
“Todo dia eu levanto disposta a fazer essa modificação na sociedade”.